terça-feira, 16 de março de 2010

Sei lá, a vida tem sempre razão para uma boa viagem

Final do dia, início de mais uma noite igual a tantas outras. No ponto de ônibus todo mundo é igual. Alguns minutos de espera e lá vem quem vai te levar para o melhor lugar.

O caminho nunca é tão longo que não possa te surpreender com alguma novidade, nem tão curto que não possa inspirar. Nesse momento de volta para casa o que mais se pode esperar senão o solavanco que adianta o sono até o ponto final.

A chuva lá fora sinalizava para um bom tempo de espera. Mas dentro do ônibus o tempo parou. Com o calor e as caras cansadas das pessoas em ponto morto, o silêncio era comovedor. Ninguém esboçava um movimento sequer. Nos rostos, sinal de sorriso não havia. Alguns passageiros estavam recostados no apoio das poltronas, outros de janelas abertas olhando para o nada. Mulheres de olhos fechados talvez preocupadas com o jantar da família e muitos jovens esquecendo a viagem com seus fones de ouvido. O cansaço apontava para um único desejo – chegar rápido aos seus destinos. Mas o destino apronta.

Na Central entra no ônibus um rapaz de vinte e poucos anos com um instrumento musical dos grandes pendurado no pescoço. Entra pela porta de trás, se dirige ao trocador e pede em um tom de quase desespero e medo, se poderia tocar seu sax para os passageiros. O sobressalto foi geral. Bem perto de mim um deles arregalou os olhos. Um casal que entrara no mesmo ponto com um filho no colo não acreditou no que estava ouvindo e tratou de garantir o único lugar vago ao lado direito do corredor. Acomodados, músico e passageiros só restou ao motorista avisá-lo que precisava da autorização do fiscal daquele ponto para seguir viagem. De dentro do ônibus o músico reverenciou-o com um olhar maroto e levantou seu instrumento pra mostrar que poderia mudar o clima da viagem com um pouco do que sabia. Pediu licença a uma moça bonita que se posicionara à sua frente para ver no que aquilo iria dar e mandou ver. Ônibus em movimento, música no ar.

Em princípio eu esperava o tradicional “Carinhoso”, Doce de Coco e dá-lhe Kenny G. Mas qual foi a minha surpresa ao ouvi-lo de prima uma canção linda interpretada por Marisa Monte. Só sei dizer que no sax do menino ficou um arraso. Ainda como um peixe fora d”água o músico tentava pescar algum sentimento perdido por ali. Estratégia pra continuar o show. Acho que esperava alguma reação do povo, mas nada acontecia. De longe eu observava discretamente o rosto das pessoas para a aquele show improvisado no meio da Presidente Vargas em mais uma noite chuvosa no Rio.

Eis que o sax dispara Careless Whisper – de George Michael e alguém bem próximo começa a bater os pezinhos no chão. O menino de colo levanta o olhar para o artista esperando outro em sua direção, como se o som o embalasse. Uma estudante que fingia demonstrar irritação por estar em pé, logo cantarola em voz baixa o solo da canção reconhecida. Percebi então que ninguém era o mesmo com a presença daquele músico dentro do ônibus.

Entre uma parada e outra o artista apresentava um número diferente. Foram mais seis lindas canções da MPB. Um clima novo pairava no ar. Gente cansada deixando-se encantar pelo som bonito do sax. Gente prestando atenção em gente. Parece que a música mexeu um pouco com cada um. Já quase no fim do seu espetáculo e quem sabe do seu trajeto lança mão de uma canção de Toquinho e Vinícius – “ Sei lá, a vida tem sempre razão” e outra vez o encanto geral.

Fim de viagem para o artista e começo de outras reflexões para todos nós. O artista agradece, expressa um ar de quem deseja o reconhecimento, ainda que seja apenas um olhar de satisfação. Caminha no corredor e todos o parabenizam efusivamente oferecendo moedas como agradecimento. Fatura talvez uns 20 reais. Surpresa, o inesperado aconteceu e a platéia animada quase pede bis. A platéia só deseja ser feliz. (Ops, acho que esse verso vem de outra música!!).

Pensando cá com meus botões em como deve ser dificil ganhar a vida com música, descubro que bom mesmo foi ver o sorriso de volta no rosto daquelas pessoas por alguns momentos e o ar de felicidade do músico em agradar seu público. Foi bacana ver como as pessoas foram se entregando à musica. O cansaço foi colocado de lado e o que se via agora era um semblante mais alegre em cada passageiro.

Olhei pra trás e ainda deu tempo de ver todo mundo querendo saber o seu nome – Rodrigo, ele disse em sorriso aberto. Demonstrando total encantamento a platéia em coro desejou-lhe sorte e muito sucesso.

De volta para casa certamente todos nós chegamos de alma lavada e muito mais leve.

Sei lá, a vida tem sempre razão.

Um comentário:

magicwolf disse...

Que momento lindo! Mágico mesmo.Me emocionei com o músico, me emocionei com a tua sensibilidade para captar a grandeza e singularidade do momento.Sortuda! Sortudos os passageiros que puderam tornar-se uma plateia tão inusitada. Um começo de noite chuvosa nunca mais vai ser o mesmo na memória de cada um de vocês. Que Deus abençoe o Rodrigo por ter uma maneira tão generosa de ganhar seu pão.
Legal partilhar essa pérola com seus seguidores fiéis.
Adorei as modificações no blog e a música de Beatles diz tudo.