domingo, 27 de dezembro de 2009

Segredos de um Almoço de Natal


Todos os anos o almoço de Natal é parecido com o outro que passou. É quando a família se reúne para saborear o que sobrou das iguarias escolhidas para se comemorar a data no dia anterior. Depois desse almoço barulhento a conversa corre solta. Permanecemos à mesa para ouvir a histórias contadas pelo meu pai. Novidades quase nenhuma. Sempre sabemos o que vamos ouvir. São histórias sobre as suas brincadeiras de criança, a vida difícil da família, a luta de sua mãe pra sustentar os 11 filhos sozinha, etc.

Como somos filhos orgulhosos e felizes, ouvimos tudo como se fosse pela primeira vez. Respeitando essa vontade que ele tem de atrair os olhares e a atenção de todos a sua volta. Quase sempre conhecemos o roteiro, mas desta vez ele nos surpreendeu. E a conversa ganhou ares de revelação.
Conversa vai, conversa vem, nos deparamos com mais uma daquelas lembranças do tempo da caserna. Lá pelas tantas, ele nos apresenta ao período em que serviu como sargento ao 2
º Regimento de Cavalaria de Guardas Andrade Neves, no Rio de Janeiro. Lá pelos idos de 58 ou 65, não me lembro bem. Ao relembrar sua passagem por lá destacou um momento vivenciado naquele ambiente militar. Dizia ele que por lá havia um preso político que ele desconhecia o nome naquele momento. Um daqueles homens condenados pelo seu grande entusiasmo em adotar pensamentos humanistas. Comunistas diziam à época. Cabia ao sargento de plantão a rotina de levá-lo escoltado para às refeições em locais reservados dentro do quartel. Foi exatamente durante um dos seus plantões que ele conheceu esse homem com cara de intelectual e boa gente. Palavras dele. Ao acompanhá-lo este homem aproveitou para fazer-lhe um pedido. O homem desejava apenas um livro para ler. Um livro, qualquer que fosse. Durante o caminho, sem pestanejar prometeu resolver o seu problema. Não contou a ninguém o ocorrido e passou meses repassando seus livros de leitura para o tal homem de conversa inteligente.

Achei tão interessante a história que queria detalhes sobre o homem que lia os mesmos livros que meu pai. Tentei descobrir quem era o homem que contava com sua ajuda. Mas ele não soube me dizer. Confirmou apenas que entre os livros cedidos, estava um dicionário que ele guardara até hoje como lembrança daquela estranha amizade. Um dicionário com diversas correções. Segundo o humanista eram correções de palavras que não se adequavam bem ao seu vocabulário. Grifos em vermelho indicando que elas estavam escritas com erros. Meu pai não soube explicar porque ele insistia em fazer essas correções em um dicionário. Seria ele um profundo conhecedor da língua portuguesa? Um professor ou quem sabe essa era apenas uma atitude que o ajudava a passar o tempo na prisão? Curiosa, perguntei onde estaria esse livro. Mas sem entender bem a minha curiosidade, prometeu que iria procurar com calma o velho dicionário rabiscado.

Fico imaginando quem terá sido esse homem que contou com os livros da biblioteca particular de meu pai. Por outro lado que atitude bonita a dele em querer ajudá-lo, apesar de contrariar todas as regras impostas pelos seus superiores.

Por tudo isso resolvi fazer esse registro. Com certeza, este ano não foi um almoço de Natal igual aos outros. Ouvimos uma história curiosa e diferente. O que será que este senhor de 81 anos ainda tem a nos revelar. É esperar o próximo almoço de Natal para conferir.

Nenhum comentário: